27/11/2020
“Passar uma pandemia
Caio de Meneses Cabral, poeta
Sem ter comida na mesa
É a maior agonia
Que pode haver, com certeza.
A pandemia revela
Que no fundo da favela,
No sertão, no litoral,
Muita gente passa fome
E se a culpa tem nome
Eu diria: o capital!
Porém há muito a fazer,
Há muito a esperançar,
Trabalhar pra defender
Outro jeito de pensar.
Com amor, com sinergia,
Com a agroecologia
E com cooperação,
A vida reage à dor
E multiplica o amor
Na boa alimentação”
Esperançar é verbo, mas também é sentimento que move. É inspiração e horizonte. Como dizia Paulo Freire, esperançar é “a capacidade de olhar e reagir àquilo que parece não ter saída”1. Foi com o forte sentimento de esperançar que a Ação Coletiva Comida de Verdade: aprendizagem em tempos de pandemia encerrou a primeira fase de sua atuação, com a realização do seminário “Comida de Verdade em tempos de crise: construindo sistemas agroalimentares sustentáveis”, na noite desta quinta, 26 de novembro.
Para celebrar o fechamento do ciclo de mapeamento, finalizado com o cadastramento de mais de 300 experiências de abastecimento alimentar com comida de verdade em todo o território brasileiro, o evento ficou marcado pelo diálogo entre representações dos movimentos sociais, da academia, da sociedade civil, do Poder Público e demais pessoas interessadas e comprometidas com a promoção da Segurança e Soberania Alimentar e Nutricional, do Direito Humano à Alimentação Adequada e Saudável, da Agroecologia e da Saúde Coletiva.
Sob a mediação da nutricionista, docente da Universidade de Brasília (UnB) e integrante do Observatório de Políticas de Segurança Alimentar e Nutrição (OPSAN), Elisabetta Recine, o seminário permitiu a reflexão de um coletivo sobre os sistemas agroalimentares saudáveis e sustentáveis que podem ser identificados entre as iniciativas mapeadas.
O debate foi inspirado pela ambientação poética de Caio de Meneses Cabral, membro do Grupo de Trabalho (GT) de Cultura Popular e Comunicação da ABA-Agroecologia e professor de Extensão Rural na Universidade Federal do Piauí (UFPI), e pelas palavras do professor Patrick Caron, vice-presidente de Assuntos Internacionais da Universidade de Montpellier. Em seguida, Inês Rugani, nutricionista sanitarista, docente da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e integrante do Comitê Gestor da Ação Coletiva Comida de Verdade, apresentou dados preliminares acerca da tipologia e da distribuição territorial das experiências cadastradas no mapeamento.
Em seguida, a convidada Mariana Santarelli – integrante do Núcleo Executivo do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN), atual relatora para o direito humano à alimentação da Plataforma DHESCA Brasil e membro da secretaria executiva da Conferência Nacional Popular, por Direitos, Democracia, Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional – e os convidados Beto Palmeira – assistente social, militante e membro da coordenação nacional do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) -, Sergio Schneider – professor titular de Sociologia do Desenvolvimento Rural e Estudos Alimentares da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) – e Alexandre Lima – secretário de Desenvolvimento Rural e Agricultura Familiar do Rio Grande do Norte (RN), discutiram acerca dos dados apresentados e sobre a agenda dos sistemas alimentares, destacando a confluência dos objetivos das organizações que compõem a Ação Coletiva.
Abastecimento alimentar
Em três meses de intensa mobilização e sensibilização de iniciativas inspiradoras para a participação no mapeamento, feito pela equipe de Articulação da Ação Coletiva, foram cadastradas 307 experiências de abastecimento alimentar na plataforma do Agroecologia em Rede (AeR). Destas, 44 se localizam na região Norte do país, enquanto 49 podem ser encontradas na região Nordeste, 42 na região Centro-Oeste, 64 no Sudeste e 108 na região Sul. Os números, apresentados por Inês Rugani, dão a dimensão da distribuição territorial de muitas das iniciativas de abastecimento alimentar iniciadas ou aprofundadas durante a pandemia da Covid-19 no Brasil.
Dados coletados pelo mapeamento são importantes para conduzir olhares analíticos e estudos, produzindo e ampliando o conhecimento acerca de temas como Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, Agroecologia, o Desenvolvimento Territorial, entre outros. No entanto, mais do que números, as experiências trazem os fluxos baseados na produção local e nos circuitos curtos de abastecimento, que estabelecem relações mais justas entre os produtores e as pessoas na garantia do acesso à comida de verdade.
Para Elisabetta Recine, é importante ressaltar que o primeiro ciclo se finaliza cumprindo os objetivos inicialmente propostos pela formação do projeto que envolve 13 organizações comprometidas com a promoção da soberania e da segurança alimentar e nutricional. “A Ação Coletiva foi gestada logo no início da pandemia, em um contexto onde as forças, as iniciativas populares já se mostravam tão potentes e importantes nesse momento que nós ainda atravessamos, e ao mesmo tempo buscando soluções, caminhos para conectar o campo com a cidade, o alimento com a fome, quem produz e quem precisa comer. Nesses meses em que o projeto foi desenvolvido, coletou informações de centenas de experiências e estamos agora celebrando a finalização dessa primeira etapa, anunciando os desdobramentos ainda possíveis dessa iniciativa, para que a gente possa compreender o processo da maneira que ele merece ser compreendido”, afirmou Elisabetta.
De acordo com Inês, é sobre essas e outras informações que a equipe da Ação Coletiva cuidadosamente se aprofunda a partir de agora, com o encerramento da primeira fase. “O que está por vir é um momento de análise mais profunda sobre os cadastros, para conhecer melhor os aspectos de caracterização dessas experiências, as diversas maneiras com que enfrentaram os desafios da pandemia. Por isso que, além do mapeamento das iniciativas e da estratégia de dar visibilidade a essas histórias, que a Ação Coletiva passou a disponibilizar ao público uma biblioteca com cerca de 350 materiais catalogados”, afirmou Inês Rugani.
A potência que a agricultura familiar tem de organizar a produção e a distribuição de alimentos saudáveis em diferentes territórios foi o fio condutor da participação do assistente social Beto Palmeira, militante e membro da coordenação nacional do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA). Para ele, apesar dos impactos negativos causados pela pandemia, a crise sanitária contribuiu para destacar as potencialidades dos grupos organizados pela soberania alimentar.
“As respostas rápidas que a agricultura familiar foi capaz de oferecer diante dos desafios da pandemia revelam a essencialidade do que chamamos de sistema de abastecimento popular. Estamos falando de construções ativas nesse movimento de resistência, de levar não só o alimento a quem precisa, mas também o debate sobre a importância da agroecologia e da soberania alimentar. Além disso, a crise também contribuiu para mostrar a debilidade do nosso sistema de distribuição de alimentos, cada vez mais concentrado em grandes redes. Na contramão de tudo isso, as experiências organizativas apontando para outra direção, é isso que temos que fortalecer”, destacou Beto.
Aprendizados
O que revelam as experiências de abastecimento alimentar, registradas e documentadas pela Ação Coletiva Comida de Verdade, acerca da produção de conhecimento e de diversos modos de construir alternativas para o abastecimento alimentar no Brasil? Um dos objetivos iniciais da Ação Coletiva também conduziu os diálogos do seminário de encerramento desta primeira fase.
De acordo com Patrick Caron, o mapeamento das experiências é um trabalho fundamental para desenhar passos futuros. “A crise é um momento muito importante para se construir o amanhã. Ter a oportunidade de repensar, reorganizar e celebrar o aspecto da proximidade dos territórios e a relação entre produtores e consumidores de maneira diferente, nos ajuda a pensar políticas públicas adequadas ao mesmo tempo em que incidimos nos aspectos nacional e global. As experiências territoriais são a melhor semente que tem, inclusive para se agir nessas escalas. O território também é político, e é através da construção de proximidade e de soberania que podemos pensar numa nova governança dos sistemas alimentares a nível nacional e global”, explicou Patrick.
Para ele, que é vice-presidente de Assuntos Internacionais da Universidade de Montpellier, a ciência tem papel fundamental no campo da construção de alternativas. “A aprendizagem é um ponto central em processos como esse, pois estamos caminhando para um mundo novo, onde a incerteza e o risco se fazem cada vez mais presentes. É aí onde reside a importância de documentar o presente, de reforços como o da Ação Coletiva na construção de uma ação pública que seja um bem público norteador para o nosso futuro. Citando [François] Rabelais, a ciência sem consciência não é mais que a ruína da alma”, complementou o professor.
A dimensão territorial e a proximidade entre o campo e a cidade também foram aspectos destacados pelo professor Sergio Schneider, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “A grande quantidade de experiências de comercialização mapeadas revela o que chamamos de mercados de proximidade ou mercados territoriais, conceito que vincula as iniciativas brasileiras a uma iniciativa mais geral no âmbito do Conselho de Segurança Alimentar da ONU acerca do mapeamento dos mercados territoriais. Esse fator nos revela que o tema dos mercados e da comercialização finalmente está sendo apropriado por esses atores sociais que antes não participavam dos debates, ou seja, os agricultores e as agricultoras. O que celebramos hoje são as respostas que as organizações, os atores sociais e a academia são capazes de apresentar em um contexto de enfraquecimento de políticas de Segurança Alimentar e Nutricional, esse é o espaço em que emerge a Ação Coletiva”, explicou Sergio.
Políticas públicas
Se, por um lado, a capacidade de respostas e soluções apresentada pelos grupos organizados e movimentos sociais é celebrada a partir da observação sobre as experiências de abastecimento alimentar no Brasil, por outro, não se pode dizer o mesmo do Estado. De acordo com Mariana Santarelli, o poder da organização popular evidencia ainda mais os impactos do desmantelamento de políticas públicas essenciais à promoção do direito humano à alimentação, como os conselhos de participação e políticas de incentivo à compra da agricultura familiar.
“Nos chama a atenção o fato de que muitas experiências surgiram ou se fortaleceram com a pandemia, o que chamamos de experiências de resistência e solidariedade. Elas foram capazes de conectar a produção agroecológica com as pessoas que estavam passando fome. Temos políticas importantes que são dinamizadoras desses elos e relações, mas foi interessante ver como toda essa movimentação aconteceu fora do Estado, na relação que se constituiu entre os movimentos. É por isso que reafirmamos o conceito de abastecimento popular, que é capaz de dimensionar a proximidade e a localidade e reafirmar a identidade política e cultural destes sujeitos que estão por trás dos mercados. É ele que mostra quem são os sujeitos que estão produzindo o nosso alimento”, destacou a integrante do Núcleo Executivo do FBSSAN.
No entanto, apesar das limitações de atuação do Estado no tocante à soberania alimentar, iniciativas em âmbito municipal e estadual mostram as inúmeras possibilidades de ações e políticas públicas voltadas ao fortalecimento da agricultura familiar. O Rio Grande do Norte é um belo exemplo da força dinamizadora das políticas públicas. Foi lá que a resposta do governo estadual garantiu não só ações emergenciais de doação, como também a ampliação a longo prazo de aquisição dos alimentos produzidos pelas famílias agricultoras locais.
De acordo com Alexandre Lima, secretário de Desenvolvimento Rural e Agricultura Familiar do Rio Grande do Norte, o acesso da população a alimentos saudáveis passa pelo fortalecimento do diálogo entre o Poder Público e as cooperativas de agricultura familiar. “Através de oficinas territoriais realizadas junto a agentes da agricultura familiar, nós pudemos mapear a oferta de alimentos saudáveis e regionais, como o feijão macaçar, o arroz vermelho, a goma, entre outros itens que são nutritivos e compõem a nossa identidade. Em comparação ao ano passado, ampliamos em 31% o número de produtos adquiridos junto à agricultura familiar, justamente no período da pandemia. Distribuímos cestas básicas com 22 itens para 1.700 famílias quilombolas e 60 mil cestas básicas para outras famílias em vulnerabilidade, todas compostas por alimentos da agricultura familiar. Para o pós-pandemia, continuaremos nesse caminho”, destacou o secretário.
Segundo ele, o contexto político é desfavorável, mas é possível reverter os desafios através da escuta e das ações coletivas nos territórios. “Nós construímos uma plataforma programática que estabelecia muito claramente, a partir de um processo de escuta com os movimentos sociais e com a academia, a necessidade de que o governo do Estado pudesse estabelecer um novo padrão de políticas públicas. A nossa prioridade sempre foi muito clara quanto à necessidade de transição agroecológica e a produção de alimentos saudáveis. Alimentação é o que conecta o urbano e o rural e para além de construir um conjunto de políticas, temos clareza que é preciso dialogar com o consumidor urbano. E o alimento saudável é esse ponto de conexão”, afirmou Alexandre.
Potencial transformador
Harmonizar a necessidade de ações emergenciais para o combate à fome com propostas práticas ao futuro do abastecimento alimentar é um grande desafio. De acordo com Renato Maluf, que se encarregou das palavras de encerramento do seminário, o potencial transformador das iniciativas mapeadas pode ser destacado em diversos aspectos.
“Estamos falando de experiências que promovem novas relações, movidas por valores, e um deles é o da solidariedade. Embora haja uma dinâmica mercantil na construção de mercados, há uma forte dimensão de solidariedade entre iguais. A disputa de narrativas e a promoção de práticas emancipatórias frente à hegemonia da indústria alimentar também são aspectos que merecem destaque. Poderia destacar também as dimensões educacional,territorial e de visibilidade. Acima de tudo, o que essas iniciativas revelam é a disputa pelo controle social do abastecimento. Além disso, como se tem atores da agricultura familiar disputando com as estruturas dominantes e hegemônicas”, destacou Maluf.
Com o encerramento do mapeamento conduzido pela Ação Coletiva Comida de Verdade, a equipe de coordenação, formada por pesquisadores/ras, professoras/res, consultores/ras e especialistas, nos segmentos da agricultura familiar, nutrição e alimentação, agroecologia, segurança alimentar e nutricional, desenvolvimento rural e territorial, se debruça sobre as informações coletadas, buscando subsídios sobre os processos de transição, adaptação, fortalecimento e resiliência dos sistemas agroalimentares.
1. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
Fonte: Ascom/Ação Coletiva Comida de Verdade
Foto de capa: Thiago Japyassu